Passei uns dias em NY e decidi fazer uma visita bate-e-volta ao meu irmão que mora em West Hampton, na vizinha Connecticut. O meio mais fácil de chegar lá – nem tão fácil assim – é pegar um trem na Grand Central e, duas horas e meia depois, saltar em New Heaven, onde meu irmão me buscaria, para mais cinquenta minutos de estrada em seu carro, já em boa companhia.
Tomei um café corrido, desconectei meu celular do carregador, coloquei-o dentro da bolsa e me joguei dentro de um taxi rumo à estação de trem. Comprei meu bilhete, chequei o horário, folheei umas revistas num quiosque e me dirigi para a plataforma. Tudo certo, tranquilo, cronometrado.
Sentei-me na janela e me preparei para a viagem, feliz por ter um tempo só para mim. Poria minha leitura em dia, depois meus e-mails, responderia as mensagens das filhas, família, amigos, e dos quatrocentos e sessenta grupos ativos dos quais não consigo sair por medo do “Eunice left” parecer antipático.
Abri a bolsa e percebi que tinha deixado meu kindle em casa. Sem problema. A quantidade de mensagens e e-mails no celular seria suficiente para matar o tempo de três idas de trem a New Heaven. Idas e voltas.
Quando tirei o celular da bolsa meu coração quase parou. O visor mostrava meros 12% de bateria restantes. Tinha certeza de tê-lo deixado carregando a noite inteira. Me lembrava de ter tirado o celular do carregador antes de sair do quarto de hotel. Mas certezas e lembranças de nada serviam porque a realidade nua e crua estampava um celular com a carga prestes a entrar no vermelho, e eu dentro de um trem presa pelas próximas duas e meia horas.
Respirei fundo. Tentaria dormir, meditar, olhar a paisagem e não pensar na quantidade absurda de correspondência e leitura que eu, por descuido, perdia a chance de botar em dia. Lembrei das minhas aulas de ioga, fechei os olhos, inspirei e expirei, inspirei e expirei mais uma vez, e mais outra, resignada.
Um mar de gente passava pela plataforma à procura de lugar nos vagões. Olhavam através da janela e me viam sem me enxergar, já que não era a mim que procuravam, e meu vagão se encontrava lotado.
Éramos três desconhecidos sentados lado a lado tendo outros três desconhecidos enfileirados bem à nossa frente, apenas separados por uma mesa estreita e comprida, num quadrado de pouca privacidade. Os quadrados se sucediam, ao lado, à frente e atrás, e todos os viajantes, até mesmo as crianças, tinham suas leituras ou celulares para ajudar o tempo a passar.
O trem se pôs em movimento e fechei os olhos pensando em dormir, mas vinte minutos depois eu continuava acordada e num mau-humor crescente até que algo inesperado aconteceu.
Uma jovem vinda de outro vagão pediu licença e entregou a cada um de nós uma caneta e uma prancheta de onde pendia uma folha em branco. Explicou que estava fazendo um trabalho para a faculdade e pediu que escrevêssemos, de forma anônima, uma “carta de agradecimento à mãe”.
– Não será corrigida ou avaliada, nem divulgada. É para minha tese de mestrado. É importante que seu conteúdo seja verdadeiro e que as palavras brotem do coração.
– Não tenho mãe – resmungou o sujeito ao meu lado, fazendo menção de devolver a prancheta.
– Não tenho o que agradecer – disse em voz alta e afirmativa uma moça que viajava com duas crianças pequenas algumas filas à frente.
– Escrevam se tiverem vontade. Mesmo aqueles cujas mães já se foram. Mesmo os que acreditam que não têm o que agradecer. Há sempre algo a ser dito. Um momento vivido, uma lembrança feliz…
Algo na sua voz tranquila nos impelia a, ao menos, tentar.
Alguns passageiros já rabiscavam, surpresos com a tarefa inesperada, muitos deles, assim como eu, felizes por terem algo diferente com que se ocupar.
A jovem das pranchetas se foi em direção a outro vagão agradecendo a cooperação de todos e garantindo que em meia hora voltaria para recolher as cartas.
Levantei os olhos do papel e olhei à minha volta. Até mesmo o rapaz órfão de mãe e a moça ingrata seguravam suas canetas, olhos fixos na folha em branco, pensavam no que escrever.
Rascunhei uma carta bonita para ser passada à limpo, afinal escrevia à mão, sem tecla “delete” ou “copy/paste” para facilitar minha vida.
As instruções eram simples e claras: que seu conteúdo fosse verdadeiro e que as palavras brotassem do coração.
À medida em que eu escrevia, mais do que palavras brotavam do coração. Sentia uma onda de emoção envolver todo o vagão. O rapaz ao meu lado, visivelmente tocado, escrevia freneticamente. A jovem mãe das crianças deve ter lembrado de algum bom momento em família, pois sua caneta viajava solta sobre o papel.
Coloquei o ponto final na minha carta e descansei a mão. Reli o que tinha escrito. Fechei os olhos e relaxei. Dormi.
Acordei pouco antes de chegar ao meu destino com a prancheta ainda em meu colo. A jovem sumira como por encanto deixando cada um com a sua carta e com as suas emoções.
Ao ver que o trem já freava, coloquei meu papel na bolsa, vesti o casaco e me preparei para desembarcar. Todos faziam o mesmo e as pranchetas ficaram vazias sobre os assentos.
Um senhor, ainda sentado, colocou sua folha escrita no bolso do paletó. O rapaz, com os olhos vermelhos e nariz inchado, se afastou para me deixar passar. Cruzei com a jovem mãe que levava uma criança no colo, a outra pela mão, uma mochila às costas e a carta dobrada junto ao peito, presa no sutiã.
Saltei do trem e caminhei pela plataforma em direção à saída. Penso ter visto a jovem das pranchetas sorrindo e nos observando de um canto da estação.
Nunca saberei se fui parte de um trabalho de faculdade, e qual era a real motivação da moça, só sei que ela fez um bem tremendo a todos nós.
Estranha e emocionante viagem, aquela…