Estava na fila de embarque da ponte aérea para São Paulo quando um celular bem próximo tocou. Achei que fosse o meu, e já ia enfiando a mão na bolsa quando um sujeito à minha frente sacou seu telefone do bolso do paletó.
Ingressei, por não ter mais o que fazer presa a uma fila, no meu passatempo de tentar adivinhar o que as pessoas à minha volta são, fazem e sentem. “Voo das 11:00, ponte aérea, paletó, bagagem pequena de mão”, logo deduzi que o rapaz estava indo para uma reunião ou almoço de negócios em São Paulo, e que o telefonema vinha de um sócio, ou parceiro, muito provavelmente um assunto de trabalho.
Mas eu estava enganada.
Ouvi, mesmo sem querer, um monólogo – na verdade um diálogo, mas eu só escutava um lado – sofrido e íntimo, um grito de socorro de um pai pedindo por sua filha criança. Na outra ponta imaginei uma professora, ou uma babá, ou, mais provavelmente, uma terapeuta.
– Sim, te liguei, obrigado por retornar. Por favor, veja o que você pode fazer pela Julia. Fale com a mãe dela, por favor.
– …
– Eu sei, eu sei. É que minha filha morre de saudade da avó que se recusa a falar com ela. Não atende o celular, não lê as mensagens, nada.
– …
– Eu entendo, mas é que ela sofre e fica me pedindo para ir para Belo Horizonte visitar a avó. Não tenho como pagar passagem e matar trabalho para levar a menina, e nem sei como ela vai ser recebida…
– …
– Sim, eu entendo… Você está fazendo um súper trabalho, eu sou grato, e só te peço mais esse favor…
– …
– Eu sei, mas não acho justo a avó descontar na menina e a mãe não fazer nada. Quem sofre é a minha filha. Não aguento ver isso. Sei que você vai dar um jeito de nos ajudar…
– …
– Não adianta, ela não fala comigo. Já desisti.
– …
– Qualquer coisa, por favor… Estou embarcando para SP, mas amanhã estou de volta ao Rio. Fale com a mãe dela. Faça tudo o que você puder. Por mim, pela Julia. Por favor!
A fila andou, embarcamos, cada um seguiu sua vida, ainda que, pelos próximos cinquenta minutos, dentro do mesmo avião.
Sentei-me triste na minha poltrona e enquanto via, pela janela, o avião ganhar velocidade, decolar, e lentamente fazer a volta em direção ao sul, pensei em como as pessoas podem ser rancorosas a ponto de passar como tratores sobre sentimentos de uma criança que simplesmente ama, e quer ser amada. Continuei, agora com mais subsídios, com meu passatempo, e imaginei o rapaz recém-saído de um casamento, uma ex-mulher magoada, uma ex-sogra raivosa, e uma menina na linha de tiro de afetos mal resolvidos. Imaginei uma terapeuta buscando ajudar a famíia e fazendo um bom trabalho, mas que nada tem a ver com o leva-e traz de informações para as partes do ex-casal.
Questionei minha omissão, considerando o conhecimento que tenho sobre mediação, sobre práticas colaborativas, equipes multidisciplinares, CNV e tudo mais.
Pensei na escolha que fiz, priorizando o direito à privacidade do rapaz sobre a oportunidade que tive de ajudar. Não soube avaliar o momento e, com medo de ser mal interpretada, perdi a chance de agir. Eu podia ter pedido para trocar de lugar e me sentar ao lado dele. Teríamos cinquenta minutos de conversa sem sermos interrompidos. Não sei se tenho esse direito, nem mesmo se teria ajudado, mas o fato é que nem tentei.
Fechei os olhos e rezei, como sempre faço quando decolo, pedindo para fazer uma boa viagem, e aproveitei para acrescentar às minhas preces para que a mágoa dessa avó abrandasse, e que o seu coração se abrisse de forma a perdoar, e, em perdoando, se permitisse amar e ser amada.
26 respostas
Por esta e por outras que a minha admiração por você é sempre crescente!!!!! Quisera eu que a sua sensibilidade se propagasse na mesma velocidade e amplitude do corona vírus !!!!!
Com um beijinho muito afetuoso,
Stela
Obrigada, Stela! Saiba que você foi a primeira a me mostrar que o melhor caminho é o da paz. 🙂
Querida D. Eunice, que delícia poder ler essa meditação. Que possamos, a cada dia, ter esse olhar e coração generoso ao próximo.
Com carinho, Bruna ( filha de Elias e Lúcia -Petrópolis )
Bruna, que bom ter noticias suas! Como vão você e Amanda?
E-mail anotado, vou entrar em contato! 🙂
Depois do que li, Eunice; só sei de uma coisa: não deixarei de falar. Amanhã estarei com uma pessoa com a qual não tenho muita intimidade. Por coincidências da vida, tenho ciência do sofrimento que ela está passando e sobre o qual tenho algum conhecimento, experiência. Tive a sorte de ser ouvida e receber a orientação certa, no momento certo. E isso veio de quem eu menos esperava. Amanhã, o medo de parecer indiscreta não vai me calar. Obrigada!!!
Fico muito feliz de ter, de alguma forma, te inspirado. Boa sorte com a conversa! Um beijo para você
Amei
🙂
Gostei muito Eunice, essa situação é difícil para nós profissionais dessa área sempre atento ao outro, se posicionar. O melhor é que lembrou que sempre poderemos tentar … sempre. Bjs
Paola, obrigada pelas palavras! 🙂
Por vezes decidimos nos calar em respeito a individualidade do outro e está correto, apesar de nos deixar angustiados.
Parabéns pelo texto! 👏👏👏
Obrigada pelo seu comentário! 🙂
É verdade, lindo texto e boa reflexão. O mais importante é o zelo pela criança.
🙂 🙂 🙂
Não sei se estou triste, de coração apertado, pela sorte, digo má sorte, da menina, do pai, por seu sofrimento por não ter sido intrusiva, ou pela forma como você escreve, como narra fatos corriqueiros.
Sou intrujão, respondo a conversas de pessoas perto de ouvidos indiscretos escuto e me meto sem ser chamado; em geral me dou bem, me alegro pela intromissão. Mas às vezes, “boca nervosa” como me chama a Julieta, passo por maus bocados.
Mesmo que a sorte virasse e quase sempre me desse mal, não mudo; é índole, bem ou maldição; não mudarei.
Parabéns por sua sensibilidade, seu caráter, jeito de ser, e por nos comover, ensinar, ou alegrar a cada postagem.
Obrigada, Flavio, pelas palavras, e aqui vai um pedido: mesmo correndo o risco de passar pelos mau bocados, não mude o seu jeito de ser! 🙂
Que lindo texto Eunice! E a sua sensibilidade e relato o torna a nossa frente Com a verdadeira vontade de ajudar! Sim! Tanto ódio e rancor a serem recebidos para uma criança inocente e que carregará isso para toda a sua vida.
Acho que você ja ajudou com os seus pensamentos e preces. Deus iluminará essa família , retirando o rancor. Parabéns! Adorei o texto. Apesar de real e triste… mostra que ainda estamos vivos a sentir as coisas que devem nos incomodar mesmo. Beijos
Obrigada, Monica. 🙂
Querida Eunice, obrigada por compartilhar suas dúvidas e nos fazer refletir, sei exatamente como se sentiu, mas não se culpe, vc fez o que seu coração mandou e Foi lindo te-los incluído nas suas preces, com certeza ajudou 🥰🥰, bjos ⭐️
Obrigada, Bahie! 🙂
Texto prazeroso apesar de um assunto triste, parabéns. Bj
Obrigada! 🙂
É uma escolha desafiadora. Querer ajudar e ter receio pela possibilidade de ser considerada intrometida é algo que já senti muitas vezes. O texto vai inspirar muita gente !!
Assim espero! 🙂
Oi, Eunice! Como você escreve bem! O fato é que temos que ter preparo e afeto para uma ajuda eficaz. E você tem de sobra! Seu texto me deu vontade de saber mais sobre o curso de mediação! Beijos
Obrigada pelo elogio!! Sobre a mediação, dê uma olhada no meu site eunicemaciel.com.br
Clicando em “mediadora” vc já tem algumas informações. E depois a gente conversa e eu te tiro todas as dúvidas com o maior prazer!!! 🙂