A menina tinha uns cinco anos e vivia pedindo um cachorro. Qualquer cachorro. Grande ou pequeno, peludo ou não, bonito ou feio – até feio servia – desde que fosse seu.
Os pais já tinham a resposta decorada de tanto ser repetida, sempre a mesma: “O apartamento é pequeno, cachorro baba, solta pelo, late e faz barulho para os vizinhos. Você é muito nova para cuidar de cachorro e vai sobrar pra nós”.
Não havia nada que a menina pudesse fazer, a não ser torcer, insistir e rezar.
Parece que rezar funcionou porque algo muito próximo a um milagre aconteceu.
A cadela de um casal amigo da familia teve nove filhotes, e os donos estavam dando os bichinhos para quem se dispusesse a levar para casa um cachorrinho que ia crescer muuuiiito, de uma raça pouco amistosa, um verdadeiro cão de guarda. Definitivamente o tipo de cachorro que não se cogita ter num apartamento pequeno e que, além do mais, baba, solta pelo, late e faz barulho para os vizinhos.
Então fez-se o milagre.
Os pais da menina aceitaram um filhote que ficaria no apartamento pequeno enquanto fosse, ele, também, pequeno, até poder ser despachado, vacinado e independente, para a fazenda dos avós, a algumas horas de viagem, para cuidar da propriedade.
A notícia foi dada à menina no dia em que completava anos e, parte do presente, ela podia escolher, dentre os nove cãezinhos, qual seria o seu. Neste ano não teve festa mas foi seu melhor aniversário. Escolheu um macho que, assim que a viu, saiu de perto da mãe e veio para perto dela.
– Não escolhi o Bob – ela dizia – foi ele que me escolheu.
Bob ganhou uma caminha no quarto da menina, uma vasilha de água e outra de comida, e muitos jornais espalhados pelo apartamento porque ficou claro, desde o primeiro dia, que não ia ser fácil ensina-lo a só fazer o que tinha que fazer fora de casa. Também ficou claro que não seria fácil para Bob ficar longe de sua mãe e dos seus irmãozinhos.
Na primeira noite ele chorou, e a menina chorou junto quando seus pais transportaram a caminha do Bob para a cozinha e fecharam a porta porque ninguém consegue dormir com choro de cachorro dentro do quarto.
Chorou mais uma vez de manhã com a bronca que sua mãe deu por ter ido, ela também, no meio da noite, para a cozinha, onde amanheceu deitada no chão, sobre a sua colcha e o lençol, que levou do quarto com ela.
Colcha e lençol postos para lavar, negociaram que Bob podia voltar para o quarto desde que não fizesse barulho, e a menina ficava com ele até que ele dormia, acarinhando seu pelo, e a sua cabecinha.
Bob esqueceu sua mãe e irmãos, e aprendeu a se segurar até que o levassem na rua. Esperava a menina chegar da escola, e mal ela entrava em casa ia à toda recebê-la, pulando, rodando, abanando o rabo, e só sossegava quando ela jogava a mochila no chão, se abaixava e o punha no colo.
Meses se passaram, Bob crescia a cada dia, e o colo teve que ser substituído por um abraço apertado.
A ida para a fazenda dos avós foi postergada para coincidir com as férias escolares. Iriam todos com Bob, e ficariam algumas semanas até que o cachorro se adaptasse à sua nova vida de cão de guarda.
A menina, em vão, rezava por um novo milagre. Pedia para o Bob ficar. Mas sabia que esse era um milagre ainda mais difícil de acontecer, porque Bob crescia sem parar, seu rabo esbarrava nos enfeites da mesa da sala, já tinha quebrado o buda de porcelana de estimação da sua mãe, roído os pés da mesa de jantar e rasgado uma almofada de seda do sofá, agora ao seu alcance. Quando a menina chegava da escola ele tinha que ser contido porque, de tanto latir e pular e rodar à sua volta, acabava causando acidentes como o dia em que a menina tropeçou na mochila deixada no chão para o abraço, e caiu batendo a cabeça na quina da mesa da copa.
As férias chegaram e a menina chorou quando colocaram no carro a mudança do Bob – as vasilhas de água e comida, a coleira e a guia, e o saco de brinquedos. A caminha já tinha sido dada, pequena demais para o cãozinho que se transformava num cachorrão.
As semanas passam rápido, ainda mais nas férias, e chegou a hora da despedida, o momento que todos sabiam que um dia chegaria.
A menina chorou novamente, seus pais choraram também, e até os avós, que ficaram para trás acenando quando o carro partiu, tinham lágrimas nos olhos. Bob era o único que não estava triste e abanava o rabo, na sua ignorância de cão de que sua vida nunca mais seria a mesma.
Os dias passaram em contagem regressiva até o dia de voltar à fazenda dos avós, agora transmutada, na cabeça da menina, em fazenda do Bob.
Três horas de carro depois, chegavam.
Bob não veio, como de costume, recebê-la, apenas seus avós, que ganharam um beijo, dado às pressas, por uma menina confusa ao saber que Bob passava o dia preso, e só era solto à noite. Foi levada até o canil onde o cachorro, maior do que ela se lembrava, latia e se debatia contra as grades querendo sair para ganhar o abraço de todo dia, não recebido por duas semanas.
Bob, solto pelo caseiro, veio como uma flecha se jogar sobre sua dona. Pulava e latia e, de tão nervoso, se molhou enquanto buscava o carinho, mas os braços da menina, assustada, eram usados para afastá-lo. Foi contido pelo caseiro e por uma coleira que se fechava à volta do seu pescoço, única forma de fazê-lo sossegar. Mais calmo, ganhou o carinho e o abraço, e o direito de passar o dia fora do canil. E tudo, ao que parece, tinha voltado ao normal.
A menina foi convencida de que Bob era feliz, adorava a fazenda e estava fazendo um excelente trabalho como cão de guarda.
Hora de voltar para casa com a promessa de voltar em breve, e nem deu tempo de chorar novas lágrimas pois, ao entrar no carro, uma nova confusão. Bob aprendia rápido e tinha entendido que a partida da menina significava a volta à vida de cão de guarda, sem abraço, sem passeios, sem o carinho da sua dona. Se jogou contra o carro, latindo e pulando, até ser, novamente, contido pelo caseiro e pela coleira que apertava o pescoço.
Foi essa a lembrança que a menina levou de volta para casa, e essa era a cena que via cada vez que fechava os olhos para dormir – Bob latindo, agitado e feroz, avançando contra tudo e todos para impedi-la de ir embora. E chorava baixinho na cama, dessa vez sem chamar ninguém, porque nada podia ser dito que diminuísse nela a dor da separação.
Ficou doente e não foi à escola. Teve febre por três dias sem saber que, a algumas horas de distância, seu cachorro tinha febre também, passava os dias deitado no fundo do canil, rosnava para quem se aproximasse e não queria comer. À noite a porta do canil era aberta, mas ele continuava deitado, encostado à tela, sem vontade de sair.
Como tudo passa, ambos melhoraram, a menina voltou à escola e seu cachorro reassumiu seu papel de cão de guarda, agora um cão arisco e feroz. Ninguém saia de casa se ele estivesse solto, e o caseiro era o único que o enfrentava, com ajuda da coleira que apertava o pescoço sempre que puxada.
Quando a menina voltou à fazenda não estranhou que só seus avós viessem recebê-la. Também não estranhou quando, de longe, ouviu os latidos do cachorro e o som do seu corpo contra a tela do canil. Bob sabia que ela estava ali, latia e pulava, seus dentes à mostra, esperava o abraço da dona. Pareceu a ela que ele tinha crescido ainda mais.
A menina quis abrir a porta, mas teve medo – não que o cachorro fosse bravo, mas porque era desajeitado e, com seu tamanho, podia, sem querer, machucá-la.
O caseiro entrou no canil, mas Bob não queria o homem mau. Queria a menina para lhe dar o carinho de sempre e pegá-lo novamente no colo. Bob rosnou e avançou sobre o caseiro até que sentiu o pescoço apertar, dessa vez mais forte, e parou. Respirou, ainda tonto. Viu quando a porta se abriu novamente e a menina entrou. A menina sorria porque Bob estava quieto e esperava o seu abraço. Ele era o seu cachorro, grande e desajeitado, e tinha toda razão de estar bravo com ela que tinha ficado tanto tempo sem vir vê-lo. Aproximou-se e abaixou-se, os bracinhos abertos. Bob estava tranquilo, tudo tinha voltado ao normal.
Bob ficou feliz. Ali estava sua dona, e ela não mais deixaria que o prendessem, puxassem e apertassem seu pescoço. Tinha vindo cuidar dele. Nada nem ninguém ia separá-los. Nem a tela, nem o homem mau. E foi por isso que, na sua alegria de cachorro, deu um pulo, inesperado e certeiro, e alcançou a menina antes que sentisse o maior puxão do mundo, e dessa vez era para valer. E não entendeu quando a sua menina querida foi levada, chorando, mais pelo susto e tristeza e decepção, tudo junto, do que pelo corte na testa que sangrava um bocado, mas que ia passar.
Naquela mesma tarde a família voltou para o Rio, e naquele ano não voltaram mais à fazenda.
Quando encontrava os avós, a menina perguntava por Bob, mas as respostas eram evasivas. Seus pais também não sabiam muita coisa, ou não queriam contar. Ouviu frases sussurradas, interrompidas sempre que chegava perto. Escutou “cachorro louco”, e também “incontrolável”. Falaram “assifricado” ou “sassificado” ou algo parecido, palavras que não entendia e que ninguém explicava. E de tanto não entender e não explicarem, acabou deixando para lá.
No fundo do seu coração sabia que não veria mais Bob. Sentia saudade, muita saudade. Às vezes chorava baixinho, e toda noite rezava para que ele estivesse cuidando bem da fazenda, fazendo um bom trabalho de cão de guarda, e que fosse feliz. Pedia para que seu cachorrinho se lembrasse dela com o mesmo carinho com que ela se lembrava dele sempre que se olhava no espelho e via a marquinha na testa do beijo de despedida.
2 respostas
O melhor conto que você já escreveu, profundo, me tocou de tal forma que não consigo parar de chorar.. Que trabalho espetacular!
Que bom que você gostou, minha linda menina sensível. Saber que tocou o leitor é o maior elogio que quem escreve pode receber. Obrigada! 🙂