– O Rio de Janeiro é uma favela.
Ouvi sem concordar, mas também sem discutir. O contexto em que a frase foi dita não era propício a discussões. Cosi è (se vi pare) – Assim é se lhe parece – título genial da peça de Pirandello.
A mim não parece.
É no Rio que eu posso acordar, atravessar a rua e dar a volta na Lagoa, uma caminhada de 7,5 kms. num cenário de pura beleza. Escolho olhar o espelho d’ água e o relevo à volta dele sem me incomodar com o trânsito próximo a mim, já pesado mesmo cedo.
É no Rio que posso ir à praia sem ter que pegar carro e estrada e voltar a tempo de tratar dos afazeres do dia-a-dia. Há quem prefira dormir até mais tarde ou ficar no ar condicionado.
É no Rio que muitas ruas desembocam em paisagens de cartão postal. Meu queixo cai a cada chegada ao Aterro ou sempre que passo pela Lagoa-Barra. As ruas esburacadas de Botafogo que levam ao Aterro não me tiram esse prazer e tampouco a feia Rocinha que deixo ao largo a caminho da Barra – afinal, à minha frente está a Pedra da Gávea em todo seu esplendor.
Sei que sou um ponto fora da curva. Não conheço ninguém que tendo morado no mesmo apartamento por mais de trinta anos ainda tire fotos frequentes do pôr do sol visto da própria janela. Também não conheço ninguém que depois de oito anos de ponte aérea com duas idas mensais a São Paulo faça questão de viajar na janela do avião e se delicie a cada decolagem.
Escolho para onde olhar sem, contudo, deixar de enxergar a pobreza crescente e as mazelas de uma cidade que poderia ser a mais linda do mundo. Lamento a sequência de políticas erradas vindas do que há de pior em matéria de políticos que eu (mea-culpa, absolvida pela falta de opção) ajudei a eleger. Vejo com tristeza a piora do atendimento nas lojas, mercados e restaurantes, a impaciência dos motoristas de taxi, a decadência dos serviços em geral, resultado da baixa qualidade da educação que chega aos cariocas e que acaba afugentando turistas, tradicionais moradores e, consequentemente capital, alimentando o círculo vicioso de empobrecimento.
Hoje, morando em São Paulo com um pé ainda no Rio, busco viver o melhor de cada cidade sem compará-las, até porque não se compara sorvete de coco com empadão de camarão. Depende do momento, da fome e da decisão de apreciar o que se tem. Depende da vontade de ser feliz e de assumir a mudança de cidade sem precisar denigrir aquela que, por qualquer motivo, foi deixada para trás.
E, definitivamente, o Rio não é uma favela. Longe disso. É uma das mais lindas cidades do mundo onde a floresta atlântica encontra o mar, onde pedras como o Pão de Açúcar e as Cagarras saem de dentro da água e onde a cada dia se tem o mais lindo por do sol visto do Arpoador. E falo com o conhecimento de quem, graças a Deus!!, teve a oportunidade de conhecer os mais lindos recantos desse nosso planeta terra.
Favelas existem em todos os lugares do mundo, mesmo nos arredores de algumas das cidades mais ricas. Duro é para quem não pode, por destino, evitá-las. Tenho a sorte de poder escolher onde andar, para onde olhar e o que enxergar. E vejo um Rio lindo que prefiro acreditar que assim é se me parece…
33 respostas
Lindo, Eunice poesia pura.
A minha mãe que era uma forasteira,vinda Porto Alegre amava o Rio com verdadeira paixão; se sentia a mais autêntica carioca da gema.
Obrigada, prima! Não é a toa que o simbolo da cidade são os braços abertos”
Bela visão, belo olhar de quem é sensível,. E mesmo em meio ao caos de uma cidade desgovernada em todo os sentidos, ainda consegue ver o belo. E enquanto tivermos este olhar, teremos pessoas para tentar mudar esta triste e atual situação do Rio de Janeiro.
Exato! Que exista sempre a vontade e que sejam feitos esforços para melhorá-la.
Parabéns por seu escrito e opinião com a qual concordo e também é a minha. Nascida paulistana sou carioca de alma . As circunstâncias da vida me fizeram mais tempo carioca , mas sei apreciar o valor que Sāo Paulo oferece. Um grande beijo!
Cidades lindas e complementares, ambas com suas belezas e seus problemas.
Linda reflexão e ponto de vista.
Acredito que devemos sim olhar o melhor de todos os lugares.
Gostei do conteúdo
Obrigada, Nando!
Uauu, lindo texto e me deu uma bocado para pensar estando tão longe do Rio há quase um ano. Parabéns pelas lindas palavras!!
Feliz que você tenha gostado. Beijo com muito amor!
👏👏👏👏
Carioca de coração!! Assim como eu!!!
Temos que cantar as maravilhas e incentivar as iniciativas das mudanças necessárias!!
Sem perder a esperança de que virão as (muitas) mudanças necessárias.
Delicia de texto, Eunice! Sinto o mesmo! Fotos do nascer do sol quase diárias e do subir da lua cheia atrás da Urca com direito a rastros prateados na baía. Enxergar além, dar valor para esses pequenos milagres da natureza e seguir valorizando o que a cidade tem de bom, é o dom do carioca ‘bem resolvido’. 🤗
Essa é a ideia. Obrigada, Mana!
Eu te entendo: não é ignorar o errado ou feio, é não priorizaram esse olhar, é procurar sempre o certo e a beleza, e no nosso Rio – convenhamos- isso fica mais fácil!
É isso aí! 🙂
Nini querida,
Lindo de morrer, só podia ser de você!
Quero dizer o lado que para mim é um acréscimo da beleza da nossa cidade:
As favelas do Rio viram árvores de Natal à noite com sua iluminação de estrelas a piscar como os corações de nós CARIOCAS a
bater.
Lindo seu comentário. Uma imagem para um próximo texto sobre o Rio. Bjs
Eunice querida,
A nossa cidade está precisando elevar a sua autoestima. Esse texto é isso…. nos da essa sensação de orgulho de morar aqui apesar dos pesares
É isso aí! Obrigada, Christina 🙂
Os caminhos, como os olhares, são feitos através de escolhas, ora dom, ora maldição, conforme o estado de espírito. O riso, o belo, a leveza, o otimismo, antes de estados de alma, fazem parte dessas escolhas. É muito bom, mesmo com todo o peso que cada um carrega consigo, ter o poder de escolher o modo de ver e viver as próprias experiências, independente de onde se está.
Linda observação, Georgia. Obrigada por compartilhar.
Parabéns! Esse é também o meu entendimento da essencia de ser carioca. A beleza exuberante da nossa cidade contagia nós carioca e aos turistas que nos visitan. Marcos Cabral.
É isso aí. Um forte abraço!
Gostei muito da sua visão de ver o que o Rio tem de melhor, não é a toa que “O conjunto da obra”, rende ao Rio o status de uma das cidades mais mencionadas na arte, na literatura, na música e na poesia brasileiras – um dos fatores que fez a Unesco incluir a cidade no rol dos patrimônios mundiais. Já a cidade que escolhemos morar nos fala mais aos aspectos (não só de beleza) mas de oportunidade, prosperidade, segurança, etc…precisamos encontrar mais dignidade para qualquer ser humano morar. Meu coração já é divido, entre essas duas cidades, há muito tempo. Continue aproveitando o melhor das duas!! Bjs
Esse é o segredo: enxergar o que a cidade tem de bom sem deixar de reconhecer seus imensos problemas.
Obrigado, querida alma carioquíssima!
Mostrou-me, com este poema de amor, que andei procurando onde pertenço, que pedaço me pertence, onde pode estar meu canto, em lugares errados.
Disse e escrevi que, quando eu tivesse recursos, voltaria a Pitangueiras, no Guarujá; é verdade que foi lá que vivi os melhores momentos dos últimos dez anos; não os de minha vida, você me lembrou e mostrou.
Você sempre me ensina e empolga com sua sensibilidade, clareza do olhar, em escrita deliciosa.
obrigado e parabéns.
Wowww!! Fico feliz que tenha despertado essas lembranças em você. Beijo com carinho. 🙂
Muito lindo e muito real , cada frase vinha a minha memória uma viagem pelo nosso Rio querido .
Parabéns, adorei
Obrigada, Ana Lucia! Mal cuidado mas ainda assim lindo e querido. 🙂
Eunice! Gostei muito de sua visão de nossa cidade maravilhosa. É fácil criticar quando a percepção não é nítida e contaminada. Parabens!
Obrigada, Fernando!