– Sua vida pregressa não me interessa – falei, sem muita convicção, tentando fazer graça.
Ana deu uma de suas gargalhadas espontâneas que me soou menos espontânea que o normal, e me abraçou por um tempo e com uma força também diferentes. Ou eu é que havia mudado? Tinha acabado de ouvir que a mulher por quem eu estava apaixonado era uma prostituta. Sem qualquer chance de um mal-entendido porque era ela mesma quem dizia…
***
Me mudei para São Paulo no tranco, por uma oportunidade de trabalho dessas que a gente não joga fora. Não tive os dias de praxe para encontrar apartamento, organizar a vida, me acostumar com a cidade. Fui catapultado para um escritório cujo ritmo era frenético, o horário, inexistente, com uma reunião atrás da outra até tarde da noite. Quando eu chegava no apartamento alugado, tropeçando em caixas de mudança abertas, mas ainda cheias, tudo que eu queria era tomar um banho e cair duro na cama. Aos poucos fui me acostumando com a falta de horário e com as caixas espalhadas esperando serem esvaziadas, já fazendo parte da decoração. Não era feliz nem infeliz. Estava focado no desafio aceito de coordenar a campanha do candidato a prefeito do estado mais poderoso e rico do Brasil. Pensar na vida ou no apartamento, ou na mudança para outro estado, seria um desperdício de tempo e energia, absurdo e desnecessário, algo para depois das eleições.
Acabava de sair de um relacionamento de dois anos sem saudade ou sequelas, e meus pais, irmãos ou amigos deixados no Rio, não eram motivo suficiente para eu pegar uma ponte aérea ocasional. E mesmo que fossem, duvido que eu encontrasse tempo. Assim, ia ficando por São Paulo, durante a semana enlouquecido de trabalho, e nos fins de semana, nos poucos em que eu não trabalhava, me recuperando do cansaço acumulado ou tentando esvaziar parte das caixas empilhadas nos quatro cantos da casa.
Meu primeiro convite para sair veio de um colega de trabalho que comemorava seus cinquenta anos. Eu mal conhecia o sujeito, mas achei que devia ir. Era o editor-chefe responsável pelas publicações da campanha e convivíamos quase diariamente no escritório. Além disso, seria bom conhecer gente na minha, agora, nova cidade. Enfrentei a preguiça e lá fui eu para a festa, num belo apartamento com vista para um parque, um lugar bacana e verde em pleno centro de São Paulo.
A música era alta, a bebida, farta, as pessoas em grupos pareciam estar se divertindo e eu fiquei circulando com um copo na mão tentando me enturmar com os poucos que eu conhecia de vista do escritório. Dureza. Me arrependi de ter ido. Quando já não dava mais para aguentar, tonto com a música, bebida ou sono – ou a combinação dos três – fui saindo de fininho. Esperei o elevador chegar, o que me pareceu uma eternidade pois não queria ser visto indo embora.
Quando, finalmente a porta se abriu, entrei, apertei o “T”, e suspirei aliviado ao vê-la se fechar. Mas ela parou no meio, com uma mão feminina de unhas vermelhas interrompendo seu movimento, e se abriu de novo.
Vi à minha frente uma linda mulher de corpo escultural que entrou no elevador e me deu as costas, colocando-se pronta para sair. Pude observá-la sem ser visto pelo tempo que se leva para descer do décimo quinto andar ao térreo. Corpo perfeito enfiado num vestido preto justo, cabelos claros presos num coque, saltos altos e finos. Assim que aterrissamos, me deu boa noite sem olhar para trás, e seguiu pela portaria se equilibrando sobre os saltos sem dificuldade.
Bela mulher, saindo cedo da festa, como eu.
Parada, ainda de costas, tirou da bolsa o celular e começou a teclar. Fiz o mesmo, buscando um Uber. Fantasiei por um momento que poderia compartilhar o carro com ela. Não seria nada mal, mas as chances de isso acontecer eram quase as mesmas do meu candidato vencer a eleição, isto é, próximas a zero. Doze minutos para o carro chegar. Teclei aceitando a corrida e me sentei no sofá da portaria enquanto esperava.
A bela continuava teclando até que se deu conta da existência do sofá, mais do que de minha presença, pediu licença e sentou-se ao meu lado. O vestido justo subiu deixando à mostra coxas perfeitas. Continuava teclando e achei melhor tirar os olhos das suas pernas e focar no seu celular, já procurando assunto. Vi que ela buscava um taxi, aparentemente sem sucesso. Era a deixa que eu precisava. Pedi desculpas pela intromissão, perguntei se ela estava tendo dificuldade para encontrar um carro, bla bla bla, mais bla bla bla e a pergunta final e mais importante, para onde estava indo. Tirou os olhos da tela e me olhou, pela primeira vez constatando estar um ser humano ao seu lado, e não um pacote, um jarro de plantas ou um poodle, e sorriu um sorriso largo e perfeito como suas pernas. Meu celular acusou a chegada do carro.
– Para onde? – insisti com urgência.
– Itaim – ela respondeu.
– Quer carona? Meu carro chegou, te deixo lá.
O sorriso se alargou acompanhando um “obrigadíssima”, nos levantamos e só voltamos a conversar já no carro. Passei o novo itinerário para o motorista, ouvi outro “obrigadíssima”, com ainda mais ênfase pois, para deixá-la em casa, meu novo trajeto passara de uma quase reta para um semi-retângulo bem torto.
A bela valia a volta, teria gostado de deixá-la em Alfaville que eu conhecia de nome pelos comentários de um colega do escritório que reclamava do tempo que perdia de casa para o trabalho e do trabalho para casa.
Meu semi-retângulo torto rendeu uma boa conversa. Ana era paulista, seus pais eram do interior do estado, morava com uma amiga, tinha saído sozinha da festa pois seu acompanhante encontrara uma ex-colega de turma e tinha preferido enturmar com ela, não era a primeira vez que isso acontecia, mas… “o que fazer, é a vida…”
– Sujeito doido! – falei, e Ana deu a primeira de suas muitas gargalhadas que vieram depois, sua marca registrada, e que me faziam tão bem.
Itaim não é Alfaville, a viagem foi demasiadamente curta, mas longa o suficiente para que trocássemos telefones, e para que eu começasse a gostar de São Paulo.
***
As eleições se aproximavam, o tempo livre era cada vez mais escasso e, a contragosto, tive que adiar mais de uma vez um novo encontro com Ana. Nós nos falávamos por telefone em longas conversas, e eu gostava da sua voz.
Encaixamos um jantar corrido, já que ela tinha um compromisso depois.
Ana surgiu vestindo uma saia justa, salto alto, os cabelos soltos, ainda mais linda do que na noite da festa. A conversa fluiu e parecia que eu a conhecia há anos. Marcamos novo encontro, mas tive que furar. Consegui marcar um café da manhã perto do escritório, com uma Ana de jeans e camiseta, cada vez mais linda. Nos escrevíamos diariamente, várias vezes ao dia, e as mensagens eram cada vez mais próximas e íntimas. Quando finalmente conseguimos um tempo para um jantar relaxado, eu sabia que teria Ana para mim. E fizemos amor em meu apartamento, abstraindo a bagunça e as caixas, um amor delicioso, em total entrega, várias vezes, a noite toda. Acordei no dia seguinte com a luz do sol entrando pela janela, que eu esquecera de fechar, ao lado de uma deusa de corpo perfeito que me custou acreditar que estivesse ali.
***
Chegaram os dias em que eu mal parava no escritório, me deslocando de um lado para outro acompanhando meu candidato para onde quer que ele fosse.
Ana representava uma marca de acessórios e, como tinha horários flexíveis, passei a levá-la comigo, sempre que possível, em minhas viagens de trabalho. De dia eu trabalhava e à noite fazíamos amor. Apresentei-a aos colegas de equipe e sorvi com deleite a inveja mal disfarçada que sentiam de mim. De uma hora para outra passei a ser reconhecido, não exclusivamente pela qualidade do meu trabalho, que era inegavelmente bom, mas também por ser o cara de sucesso que namorava a beldade loura de corpo escultural. Alimentava essa inveja, aprovava seus vestidos justos e curtos e os decotes sensuais, e a risada de Ana encantava a todos, e a mim, mais ainda. A cada risada eu era invejado, e adorava isso.
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Meu candidato perdeu a eleição sem nem mesmo ir para o segundo turno, o que me levou mais cedo de volta para casa. Não completamente, pois ainda mantinha o apartamento alugado de São Paulo, mas aos poucos retornava ao Rio. Via Ana cada vez menos, mas nos teclávamos ou falávamos todo dia. Meu primeiro bom dia era para ela, e meu último boa noite também.
No dia a dia do Rio sentia saudades da Ana, de suas risadas, de seus abraços, queria estar com ela e a semana demorava a passar. Pegava a ponte aérea com um prazer de criança indo à festa, e comecei a fazer planos de convidar Ana para vir morar comigo.
Ana esteve algumas vezes no Rio, conheceu minha família e amigos, recebeu e retribuiu gentilezas, e a todos encantou. Quanto a mim, não conhecia nenhum dos seus parentes ou conhecidos, Ana era um mistério, e fazia questão de se manter assim.
Eu pagava nossos teatros, jantares, cinemas, pequenas viagens, e nunca falávamos em dinheiro. Ana se vestia bem, suas roupas eram de grife, suas bolsas e sapatos idem, e eu não tinha ideia de que vivesse apertada até que um dia me pediu dinheiro emprestado. Sua parte no aluguel estava atrasada, devia dinheiro à colega de apartamento, e o limite do cartão tinha estourado. Vinha trabalhando menos, a representação de acessórios não dava para pagar as despesas, as vendas tinham caído. Me propus a ajudá-la no que fosse necessário e coloquei à sua disposição o que me pareceu uma pequena fortuna, mas ela não se mostrou aliviada ou agradecida.
Hoje, olhando para trás, enxergo o começo do fim, que na hora não percebi, ou, se percebi, não dei importância. Estava em São Paulo, tínhamos ido a um show, e no meio de mais de duas mil pessoas num estádio lotado, coincidiu de nos sentarmos ao lado de um colega de colégio de quem eu mal lembrava o nome, mas que se lembrava do meu, e conhecia a Ana, a quem chamou de Clara. Achei que ele tivesse se confundido, mas Ana explicou que seu nome era Ana Clara. Fiquei surpreso. Tanto tempo de convivência e intimidade sem que eu soubesse seu nome todo. Ensaiei começar a chamá-la pelo nome duplo, mas ela cortou. Seria apenas Ana. Ok, que seja. Ana e só. Quando queria implicar eu a chamava de Clara, mas ela ficava brava, e desisti da brincadeira.
De uma hora para outra senti Ana se distanciar. Arrumava desculpas para meus convites, estava sempre cheia de trabalho, de compromissos, demorava para responder minhas mensagens ou retornar minhas chamadas.
O contrato do aluguel do meu apartamento de São Paulo, até então pago pela empresa, venceu, e não fazia sentido eu seguir pagando um aluguel caro, e agora desnecessário, do meu próprio bolso. Mil vezes sugeri que fôssemos para seu apartamento e nas mil vezes ouvi desculpas e evasivas, afinal, ela morava com uma amiga. Me chateava ficar em hotéis, menos pelo gasto do que pela impessoalidade do lugar. Descobri um flat de um conhecido que alugava por temporada, e que passei a alugar nos fins de semana, quando estava disponível.
No Rio eu sentia saudades da Ana, de suas risadas, de seus abraços, queria estar com ela e a semana demorava a passar. Me desesperava toda vez que ela pedia para eu não embarcar, ou porque iria visitar os pais no interior, ou porque teria alguém da família em casa, ou porque ia viajar para a fazenda de uma amiga, ou tinha um programa só de mulheres… As desculpas eram muitas e variadas. Mas estar em seus braços num fim de semana só nosso me fazia esquecer qualquer decepção anterior.
Ana seguia sendo um mistério, já que eu não conhecia nenhum dos seus parentes ou conhecidos. Duas em uma, até no nome. Para meu colega em quem esbarramos no show, e para um amigo que a cumprimentou na rua, era Clara. Para mim, apenas Ana. E sempre que eu puxava um assunto mais pessoal, desconversava.
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A agência da qual eu era sócio fechou outra conta importante na cidade e novamente me vi atolado de trabalho, tendo que ir a São Paulo algumas vezes por semana, sem muito controle de dias ou horários. Adorava surpreender Ana avisando que estava na cidade e que iria buscá-la para jantarmos e passarmos a noite juntos, mas ela não gostava de surpresas, e não foram poucas as vezes que dormi sozinho no hotel porque ela estaria em algum compromisso para o qual eu não tinha sido convidado. E isso me chateava. Passamos a brigar inexplicavelmente por pequenas coisas ridículas. E por coisas grandes também.
Até o dia que eu a chamei para uma conversa e ela me contou tudo.
Contou com todas as letras que era uma prostituta. Contou que nunca pensou em se prostituir, que tinha vindo para São Paulo para fazer faculdade, e que amava os pais e a família, de quem acabou se afastando. Teve um ou dois namorados, colegas de sala de aula, até que se apaixonou por um sujeito casado, que a enchia de presentes e a levava para viajar. Viveram assim por três anos, ela acreditando que ele ia se separar da mulher e que viveriam juntos e felizes para sempre. Cansou de esperar, rompeu o namoro. Na mesma semana conheceu alguém num bar e terminaram a noite num motel. Acordou sozinha, ao lado de um envelope que continha uma pequena fortuna e um bilhete: “Para o taxi”. O dinheiro veio na hora certa, estava com o cartão virado, deu para pagar o que devia e ainda sobrou algum. Voltou algumas vezes ao bar, mirando nos caras jovens e interessantes. Linda de morrer, saía sempre acompanhada, mas nem sempre de caras tão jovens ou tão interessantes. Formou uma clientela regular. Sabia conversar, se portar, ia a festas, acompanhava amigos dos clientes, mas sempre tratando o preço antes de pisar fora de casa. Se apresentava como Clara, a forma perfeita de identificar quem era quem nas chamadas do celular. Seu nome era Ana. Clara era invenção. E esse foi o fim da história dela.
Naquele momento achei que daria para continuar. Ana se dizia apaixonada por mim, queria ficar comigo, viver para me fazer feliz. Desde que me conheceu tentava mudar de vida, só precisava se acertar financeiramente. Tinha sido amor à primeira vista. A prova é que tinha se apresentado a mim como Ana. E eu acreditei. E disse que iria ajudá-la.
***
– Sua vida pregressa não me interessa – falei, sem muita convicção, tentando fazer graça, ainda sob o choque da revelação.
Ana deu uma das suas gargalhadas espontâneas que me soou menos espontânea que o normal, e me abraçou por um tempo e com uma força também diferentes. Ficamos alguns minutos abraçados, ela aliviada, eu anestesiado. Fomos para cama, fizemos amor como nunca. Acordei no dia seguinte atrasado para a reunião com um cliente e nessa mesma noite voltaria para o Rio. Nos abraçamos com força, demoradamente, e tive que me desvencilhar do abraço, já inaceitavelmente atrasado. Dei um último beijo numa Ana linda, nua, perfeita. Falei que ligaria assim que o avião pousasse, como costumava fazer. Ana tinha medo de avião e só sossegava quando sabia que eu já estava em solo.
Por um momento achei que daria para continuar.
Não deu.
O “pousei”, escrito no celular, foi minha última mensagem.
Ela não respondeu, ao contrário do que sempre fazia. Ela, também, sabia que tinha acabado ali.