Conheço um casal de idade. Superficialmente – são avós de uma amiga querida. Sempre achei bonito vê-los juntos, se completando, como queijo e goiabada, sempre lado a lado. Ele, com noventa e dois anos, e ela chegando aos noventa, ambos lúcidos e relativamente independentes, apesar da idade – coisa dos tempos modernos de tantos cuidados, informação e prevenção das doenças. Assim, fiquei surpresa quando soube que, de um tempo para cá, eles passaram a brigar como cão e gato, cada vez mais, a ponto da minha amiga ter perdido o prazer de visitá-los. Perguntei o porquê das brigas, que começaram assim, de repente, e achei graça quando ela me contou que o motivo das discussões são ciúmes. Sua “nonna”, como ela a chama, sente-se insegura. Passou a contar para quem quiser ouvir que o marido sempre aprontou todas no casamento e não será agora que vai deixar de aprontar.
Num primeiro momento achei bonitinho uma senhorinha aos noventa sentir ciúmes do companheiro de uma vida inteira, pai de seus filhos, avô de seus netos e bisnetos e que eu, se estivesse no lugar dele, me sentiria lisonjeado.
Mas, não há nada de bonito ou lisonjeiro. Os ciúmes são reais e, como todos os ciúmes, geram dor e sofrimento. Não é coisa de agora, é dor de toda uma vida de sentimentos represados, nunca falados, jamais discutidos. Ciúmes originados pelo conhecimento de fatos que foram se repetindo, se acumulando, e que, em nome dos costumes e do que se esperava de um jovem casal da primeira metade do século passado, foram varridos para debaixo do tapete. Mas os motivos algum dia existiram e hoje afloram sem os filtros de antigamente que perdem a força com o passar do tempo.
O mundo mudou, os costumes mudaram, e sentimentos são amplamente discutidos. A velha senhorinha observa as mudanças, primeiro indignada com a fragilidade de tantos relacionamentos desfeitos por um – para ela – quase nada. Uniões terminadas por segredos descobertos, pequenas traições do dia a dia, pelo tempo que se perde discutindo o indiscutível – afinal, o que Deus uniu o homem não separa. Mas, passada a indignação, a observação leva a questionamentos. E questionamentos levam a constatações.
O casamento de sua neta, ao contrário do que ela pensou, talvez não tenha acabado porque Maria Clara trabalhava tanto que seu marido chegava em casa antes dela e, com toda razão, ficava aborrecido. Talvez o motivo tenha sido outro. Ela nunca vai saber. O que importa é que Maria Clara está casada novamente, e feliz. Seus filhos não são nem mais, nem menos alegres do que outras crianças cujos pais vivem juntos. Maria Clara segue trabalhando e seu atual marido não parece se incomodar de chegar em casa antes dela. Melhor, orgulha-se do sucesso profissional da mulher.
Sua “nonna” – contou minha amiga – nunca trabalhou. Chegou a fazer o “normal” (seja lá o que isso quer dizer) para tornar-se professora, mas casou-se cedo e não chegou a lecionar. Passou a vida cuidando da casa para que nada faltasse em conforto ao marido e aos filhos. Os repetidos atrasos do companheiro foram relevados. Pequenas distrações e desculpas foram aceitas sem discussão. Cumpriu fielmente seu papel de mãe e esposa. Se, dos quatro filhos, três são separados, ela não sabe onde errou. Afinal, foram criados com seu próprio exemplo de amor à família e abnegação.
Sim, os tempos são outros, concluiu a senhorinha. Maria Clara provou estar certa ao decidir se separar do marido pois parece mais feliz agora. E, constatadas as mudanças, cabe a ela, aos noventa anos de idade, se reinventar e ser feliz. Parar de brigar por ciúmes, o que, a essa altura, não vai levar a nada. Deixar de sofrer. Falar o que pensa, conversar, e ouvir também o que seu companheiro da vida toda tem a dizer. Ele, assim como ela, deve ter seus arrependimentos.